segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Pode piorar sim, Tiririca

Na semana passada teve início a edição 201 daquela hora da tristeza de ser brasileiro que é o horário político na televisão. Tal como se apresenta. ele não escapa de duas alternativas: a mistificação ou a indigência. Se a campanha é rica. para cargo executivo e tem bons minutos na TV. não faltarão voos sobre as cidades e os campos, as florestas, os rios, as cachoeiras e os vastos horizontes, versão atualizada dos velhos filmes de Jean Manzon e do Amaral Neto Repórter como concordarão os últimos moicanos que ainda se lembram deles. A música apoteótica cabe o papel de reforçar o entusiasmo de quem já o possui ou despertá-lo nos que ainda resistem. Capturam-se no intervalo depoimentos de populares que. numa impressionante coincidência, se mostram todos, ricos e pobres, jovens e velhos. homens e mulheres, tomados de admiração pelo candidato.

Se a campanha é govemista. desfilarão exuberantes plantações, obras públicas tocadas em ritmo febril,


fábricas funcionando a todo o vapor, povo gozando de escandinavo nível de bem-estar. Se é de caráter nacional, serão mostrados em rápida sucessão o Cristo Redentor e os arranha-céus da Avenida Paulista, uma baiana e um gaúcho em seu cavalo. Tudo isso. claro. se fez presente na semana passada no programa inaugural de Dilma Rousself, e não foi por acaso: é a campanha mais rica. nacional. govemista e com mais tempo na TV. O programa teve ainda mais: uma espetacular sequência em que a candidata, à beira do Arroio Chuí, dialoga com o presidente Lula em rondon ia, à beira do Rio Madeira.os dois em posição de aplicar "um abração no nosso povo, um abração do tamanho do Brasil", como disse Lula.


O programa de Dilma teve tudo e mais um pouco, para ilustrar a mistificação. Perdeu seu tempo quem procurou um projeto de governo, uma definição sobre tema controverso. Quanto à indigência, repete-se a conhecida parada macabra dos candidatos a deputado. os tipos suspeitos alternando-se com os sinistros. os desconhecidos com os exóticos. Tudo muito rápido, um empurrando o outro como quem enfrenta um corredor polonês, atropelando-se para dar um recado que na maior parte das vezes se resume à recitação de um nome e de um número. Pince quem for capaz um candidato que coincida com suas visões e aspirações nessa feira de desesperados.


Não é a existência em si do horário político que deve ser posta em causa. O acesso. bem ou mal igualitário. dos candidatos e dos partidos ao mais central e mais crucial dos meios de comunicação é um avança a ser preservado. O problema é o modelo vigente. Ele está longe de oferecer informação que possibilite escolhas claras e conscientes do eleitor. E o pior é que ele é o começo de tudo, no processo político.


E preciso repensá-lo, se se desejam eleições diferentes das que, ao fim e ao cabo, vão resultar nas instituições frouxas e da democracia de segunda ordem que temos hoje. Algumas regrinhas poderiam ajudar. Por exemplo, proibir, ou limitar, o uso de cenas ex temas.


Ou exigir, em um programa por semana, ou dois, ou quantos se arbitrarem, a presença ao vivo do candidato. Perde-se na espetaculosidade hollywoodiana que as campanhas ricas se acostumaram a ostentar, mas ganha-se na autenticidade. Medidas como essastenderiam a corrigir o que os programas têm de mais vazio e, com desculpa pela expressão. alienante. De quebra, diminui-se o custo igualmente hollywoodiano das campanhas políticas brasileiras.


Mas o ideal mesmo, para produzir uma mudança "radical". como diria o candidato Plínio de Arruda Sampaio, estrela inesperada da temporada, seria mudar o caráter do programa, que de "propaganda política" passaria a "informação política". A propaganda já dispõe das muitas inserções que, ao longo do dia, são obrigatoriamente veiculadas na TV e no rádio. As duas edições diárias do programa de cinquenta minutos ofereceriam entrevistas com os candidatos. reportagens e debates produzidos e mediados por entidades neutras supervisionadas pela Justiça Eleitoral. Utopia? De realização distante como o Brasil Grande do programa de Dilma? Certamente. mas quem sabe, martelando se desde já, um dia pega?


Por enquanto ficamos com Tiririca. Tiririca é um cantor, ou ator. ou humorista (?!). ou seja lá o que for, que se apresenta como candidato a deputado federal em São Paulo. Ele diz, em seu comercial: "Que faz um deputado federal? Na realidade eu não sei. Mas vote em mim que eu te conto". De bond, peruca e roupa que lembra um arlequim da roça, Tiririca termina com o slogan "Pior do que está não fica. Vote em Tiririca". Fica sim, amigo Tiririca. Já ficou.

Por: Roberto Pompeu de Toledo.
Revista Veja, 25, agosto, 2010
edição 2179

Viva o crachá



Minha memória é traiçoeira. Muitas vezes, se encontro alguém, sei que conheço. Não me lembro de onde. Menos ainda do nome. A pessoa se aproxima com familiaridade. Penso: “Devo conhecer, e bem”. Vem a conversa. Planto deixas para ver se a pessoa me dá uma dica para localizá-la em algum arquivo da memória.
— E a vida amorosa, como vai?          
Evito a palavra casamento, por não saber se a figura é solteira, casada ou disponível. Salta a resposta:                                                                                                      
— Estou na mesma.                                                                                               
Oh, céus! Tanto pode significar que permanece com a mesma esposa ou que cumpre um antigo voto de castidade! Inevitavelmente, um amigo entra no meio da conversa.
— Opa, você está aí.
Por educação, eu deveria apresentar os dois. Impossível. Lembro só o nome de quem chegou! Disfarço:
— Estávamos aqui falando...
Piora quando o recém-chegado é um insensível e diz:
— Não vai me apresentar?
Quase grito: “Socorro!”. Tento dar uma cartada para descobrir o nome do primeiro. Digo:
— Para que tanta formalidade! Melhor se apresentarem sozinhos!
Ouço um nome comum. Continuo no vácuo. Fujo para pegar uma bebida. No meio do caminho, lembro:
— Mas é meu primo!                                                                                              Volto correndo. Peço desculpas:
— Não tenho cérebro. Mas um mata-borrão no lugar.
— Achei que estava estranho. Tudo bem, é muito ocupado.
— Ocupado, não. Sou doido!
Já cometi falhas incríveis. Certa vez pensei, ao olhar para uma mulher alta: “Acho que conheço”. A dita-cuja se aproximou:
— Não está me reconhecendo? Ou me confundiu com um coqueiro?
Era a Cláudia Raia. E eu:
— Ah, desculpe, meus óculos estão muito ruins.
Mentira. Foi um branco. Para piorar, dali a alguns meses, em outra festa, vi a mesma moça alta... e não reconheci a Cláudia Raia de novo! Por segurança, se alguém me faz sinal com a mão de longe, sempre retribuo. A pessoa faz carão. Dali a pouco descubro que era para alguém atrás de mim.
Também ocorre o contrário: penso que conheço, mas confundi com alguém. Dou um abraço, feliz:
— Sabe que eu estava com saudade?
Preocupado porque não se lembra de mim, o outro responde constrangido:
— Ah, eu também. Muita saudade.                                                                              — Como vai sua mãe? Faz tempo que não a vejo.                                                           — Está boa, ainda mora no Paraná. Nunca sai de lá.
Gelo por dentro. Jamais visitei a mãe de alguém no Paraná. E de repente descubro que não conheço o abraçado.
— Foi bom te ver, mas eu...                                                                                           — Espera!
Depois de ter falado da mãe, o fulano acha que me conhece. Quer descobrir de onde. Puxa papo:
— E seu irmão? O consultório dentário vai bem?
— Meu irmão não é dentista.
— Ah, é, confundi. Mas então...
— Pois é, então...
Crio truques com os amigos:
— Se você me vir conversando com alguém, apresente-se primeiro e pergunte o nome da pessoa.
Na hora H, ninguém se lembra!
Às vezes digo simplesmente:
— Sinto muito, seu nome virou fumaça na minha cabeça.
Magoa. A resposta torna-se amarga:
— É... Agora não dá mais importância aos pobres!
Quase me ajoelho para pedir perdão! O esquecido se afasta ofendido. Também tento:
— Claro que não te reconheci, você está tão magra! Ficou linda!
Esse truque, confesso, sempre dá certo!
Tenho ido a eventos comerciais em que todo mundo usa crachá. Que alívio! O último foi a Bienal do Livro. Encontrei pessoas que não via fazia anos.
— Oi, lembra de mim? — alguém dizia.
Espetava os olhos no crachá. Abria os braços:
— Claro! Há quanto tempo!
Sei que é uma lei impossível. Mas todo mundo devia ser obrigado a usar crachá. Minha vida se tornaria muito mais fácil. E aposto que a de muita gente também.


quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Bullying na família

 
 
Certa vez, quando dei uma palestra na Zona Leste da cidade, uma senhora me falou sobre seus dois filhos. Segundo afirmou, o primeiro era mais inteligente.
— Tenho preferência por ele, sim. Seria mentira dizer que não.
A conversa me provocou uma sensação desagradável. Pensei na vida do caçula. Qual seria seu sentimento, ao perceber que a mãe prefere o mais velho? Sou escritor. Imaginei os gestos do cotidiano: reprimendas mais fortes; presentes piores no aniversário ou Natal e talvez até comentários desdenhosos. Tomei consciência de que isso acontece muito mais do que se comenta. Fala-se muito de bullying. Livros abordam violências verbais e até agressões físicas que ocorrem nas escolas. O ataque costuma ser dirigido a quem é de alguma maneira diferente: os gordinhos, os maus esportistas, os nerds, os mais pobres, entre outros. Até um sotaque pode induzir os valentões da turma à chacota. Submetidas a uma pressão constante, as vítimas muitas vezes se rebelam. E dentro da família?
Um amigo passou a infância perseguido pelo irmão mais velho. Tudo era motivo para zombaria e até ataques físicos. A mãe, ausente, não punia o agressor. Hoje os irmãos têm uma relação distante, mal se falam. Agora a mãe se lamenta. Não entende por que os filhos não se dão bem.
— Meu irmão foi meu pior inimigo! Como posso gostar dele agora? — ouvi o mais novo dizer.
A agressão pode se voltar contra um dos pais. Soube de um vizinho que gritava com o pai e o ameaçava por qualquer pretexto porque tinha pouco dinheiro. Não usava drogas. O velho, frágil, não conseguia enfrentá-lo.
— Você é um incapaz — dizia o filho. — Nunca soube ganhar dinheiro!
Muitas vezes a própria mãe cria a situação. Uma figura da sociedade, magra e bem vestida, parece esconder sua filha, que é gorda. A garota nunca é vista em companhia da mãe nas festas que ela costuma frequentar. Em represália, veste-se de maneira relaxada. Mal penteia os cabelos.
— Minha mãe tem vergonha de mim! — já desabafou.
É difícil tocar nesse assunto. Cada família possui uma dinâmica diferente. Nem sempre as situações são evidentes, mas o atingido percebe o desprezo. Ou a comparação. É comum uma criança de olhos azuis ser coberta de elogios. Ninguém fala do irmão de olhos castanhos. Só a mãe pode ajudar, valorizando os dois.
Ou então um dos membros perde o emprego. A família passa a humilhá-lo.
— Não vou sustentar vagabundo! — certa vez ouvi a irmã, secretária, ameaçar o irmão.
Se é difícil encontrar trabalho, a agressão aumenta. E a pessoa deprimida tem mais dificuldade ainda. Perde o prumo.
Pais inventam sonhos para os filhos. Desejam que se tornem bem-sucedidos, talvez famosos. Já vi homem com bebê no colo garantir:
— Este aqui vai ser jogador da seleção. E ganhar a Copa!
O bebê sorri, sem saber da cilada. Pode ter pendor para a informática. Talvez nunca seja um craque. Passará horas diante da telinha.
Também já vi pai reclamar:
— Sai do computador, moleque! Vai jogar futebol!
O filho passa a ser constrangido. Pressionado. Conheci pessoas inteligentes totalmente desestruturadas, incapazes de se dedicar a uma profissão, por falta de apoio familiar.
Muitas vezes, o que parecem ser gestos de amor, de incentivo, são ameaças porque o filho ou irmão não segue um padrão. É difícil, mas cada família deve abrir sua caixa-preta. Adquirir a coragem de encarar suas falhas. E aprender a trocar a agressão pelo abraço.
 
 
Por Walcyr Carrasco | Revista Veja São Paulo 28/07/2010